quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A Pena da Lapidação no Irã: O Caso Sakineh Ashtiani


Girolamo da Treviso (O Jovem)
A Protestant Allegory, 1542-1543


The Stoning in Iran: Sakineh Ashtiani’s Case
By Rodrigo Freitas Palma


                      O Irã é um dos redutos do mundo onde ainda se encontra prevista a aplicação da lapidação, ou seja, o apedrejamento até a morte. A fatídica punição destina-se à repressão daqueles crimes considerados mais graves pelo universo religioso do Islã. O adultério, como se sabe, aparece com muita evidência nesta lista. Curiosamente, no Alcorão, a fonte por excelência da Sharia (Lei Islâmica) não há, propriamente, qualquer referência ao castigo em questão. Portanto, a existência da referida pena explica-se tão somente em função das diferentes interpretações proclamadas pelas muitas escolas legais muçulmanas ao estudarem as chamadas “hadith”, conjunto de provérbios e feitos atribuídos pela tradição, à figura do próprio Profeta Maomé. Não é preciso dizer que pairam diversas controvérsias sobre o assunto até mesmo entre os “doutores do Islã” (ulemás). Na terra de Ahmadinejad, a título ilustrativo, esta forma cruel e degradante de condenação é parte de um roteiro dramático que continua a ceifar vidas.

                       Recentemente veio à baila, com muita ênfase na mídia, o caso de Sakineh Mohammadi Ashtiani, uma senhora de 43 anos acusada de ter cometido adultério, pasmem, após a morte do marido! Mas não é só isso. O sistema jurídico iraniano permite outras esquisitices de mesmo gênero. Prova maior disso é que há também entre os persas uma curiosíssima modalidade de matrimônio em que o homem, sob o pretexto de se entregar de modo luxuriante a novas aventuras sexuais, mediante o pagamento de determinada quantia devidamente ajustada entre as partes envolvidas no “negócio”, digo “enlace nupcial” e objetivando satisfazer seus desejos carnais, se mantém casado unicamente por alguns dias ou, quiçá, segundo alvitre, até mesmo por algumas horas. Como se vê, de maneira bastante cínica, trata-se de legalizar a prostituição. Mas não se preocupe caro leitor: tudo ocorre dentro do mais restrito império da legalidade. Ora, esta é apenas mais uma excentricidade do moderninho “direito de família” iraniano.

                        Fato é que a condenação de Sakineh gerou grande comoção no mundo todo e se traduziu na organização de diversas manifestações, inclusive no Brasil, a favor da preservação de sua vida. E esta realidade não poderia ser de todo modo diferente, afinal, o trágico acontecimento em tela tornou-se um capítulo importante que, como uma lupa, acaba por denunciar a longa história de luta das corajosas mulheres persas contra todas as formas de opressão lamentavelmente reinantes em seu país.

                       A subjugação a qual nos reportamos assumiu cores vivas em 1979, quando eclodiu no Irã a célebre Revolução Islâmica de Khomeini. Os ortodoxos líderes xiitas que passariam a controlar um Estado cada vez mais teocrático trataram, desde pronto, de estabelecer um longo rol de leis severas restringindo a liberdade e os direitos históricos conquistados pelas mulheres na época do Xá Reza Pahlevi. O objetivo dos aiatolás era o de se posicionar radicalmente contra a influência do Ocidente, julgada pelo destempero do radicalismo xiita, como “perniciosa aos bons costumes”. Às mulheres, desde logo, foi imposto novamente o uso do hijab, uma espécie de lenço que lhes permitia apenas mostrar o rosto. Igualmente, as mudanças que tiveram lugar a partir de 1967 no campo do direito de família iraniano foram revistas por Khomeini, especialmente, aquelas que reclamavam a necessidade de maior formalidade para a consumação do divórcio, em detrimento do mero repúdio marital permitido pela Sharia. A guarda dos filhos, como era de se esperar de um universo machista e preconceituoso, voltou a ser estipulada de modo a favorecer a condição do homem nessas circunstâncias.

                       Todavia, vale aqui o registro de que as mulheres persas jamais se intimidaram, nem mesmo quando se deparavam com o espectro sombrio da face de Khomeini estampada nos cartazes e outdoors espalhados pelas ruas da capital. Proibidas de usar maquiagem, certo dia, elas ousaram fazê-lo para o horror dos carolas locais. Na atualidade, escritoras da estirpe de Azar Nafisi, militante política e defensora dos Direitos Humanos, não se cansam, oportunamente, de desnudar a hipocrisia de uma sociedade fundada no medo. Para a chateação de Ahmadinejad, não preciso dizer que ela optou por viver na América, não obstante o cultivo do amor à pátria um dia deixada para trás. O título de seu bestseller - “Lendo Lolita em Teerã” - já dá o tom do tamanho da encrenca que Nafisi enfrentaria se permanecesse em solo persa. A destemida professora universitária em meio ao caos instaurado pela revolução, promoveu entre suas compatriotas, uma análise de clássicos da literatura proibidos pelas autoridades xiitas. Recentemente, este símbolo da intelectualidade feminina que foi forjada em meio ao “fogo persa” esteve no Brasil para divulgar seus escritos. Seja bem-vinda! Por aqui, pelo menos durante o agora, a censura e o veto a uma imprensa livre são apenas parte de um projeto. Esperamos que eles nunca logrem o êxito esperado, do contrário, talvez sejamos colegas “in the Land of Freedom”, onde eu e outros tantos nos lembraremos, de forma nostálgica e ufanista, daquela perdida “terra de palmeiras onde canta o sabiá”. 

                       Enquanto escrevo estas linhas ganham força na internet campanhas de protesto que visam salvar a vida de Sakineh. Convido todos a assinarem as listagens disponíveis no ambiente virtual. As vozes de adesão partem de todos os confins da Terra. Porém, o grito mais comovente é o das crianças que se obrigam a viver longe de sua amada mãe. Elas imploram a manutenção das manifestações de repúdio à decisão da “Justiça” Iraniana. Os interlocutores do governo de Ahmadinejad, que não entendem porque as pessoas hostilizam tamanha insanidade, se esforçam para convencer os habitantes deste belo planeta azul que o Irã é apenas uma vítima de complôs gestados no Ocidente. Nisto, pelo menos, eles te razão, uma vez que uma eventual oposição ideológica orquestrada no ambiente dos aiatolás certamente redundaria em massacres. 

Postado em 04 de Novembro de 2010.
 
              Rodrigo Freitas Palma é advogado, especialista em Relações Internacionais, em Direito Militar e Mestre em Ciências da Religião. Professor de Direito em Brasília.          

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