sábado, 14 de abril de 2012

Introdução ao Direito Comparado - As Novas Perspectivas de Estudo Advindas da Pós-Modernidade


Publicado na obra de PALMA, Rodrigo Freitas (org.). O Direito e os Desafios da Pós-Modernidade. Brasília: Processus, 2010, pp.275-287.
                                                          
Rodrigo Freitas Palma[1]


RESUMO: Hodiernamente, já não pairam quaisquer dúvidas sobre a relevância da realização de estudos no campo do Direito Comparado. No entanto, em pleno século XXI, ainda são raras e exíguas as publicações do gênero no Brasil. O presente artigo científico tem o escopo primordial de trazer a lume os contornos desta realidade, dimensionando, para tanto, as razões de ordem prática que reclamam maior conhecimento da referida cátedra em nosso país.




PALAVRAS-CHAVE:
Direito Comparado. Sistemas de Direito. Sistema Romano-Germânico
       de Direito. Common Law e Pós-Modernidade.

1.1. O ESTUDO DO DIREITO COMPARADO NO BRASIL E A NECESSIDADE INSURGENTE DO CONHECIMENTO DE OUTROS SISTEMAS JURÍDICOS DA CONTEMPORANEIDADE

Relegada ao mais absoluto e absurdo desprestígio acadêmico, o Direito Comparado[2] é uma disciplina ainda muito pouco estudada no Brasil. A maior prova disso consiste no fato de que os manuais da referida cátedra que circulam no meio nacional são, em sua grande maioria, conhecidas traduções dos clássicos consagrados pela doutrina estrangeira. Ademais, sabe-se que a matéria não alcançou campo propício para o seu desenvolvimento no país, ao contrário do que aconteceria com muita ênfase na Itália, França, Alemanha e, atualmente, nos Estados Unidos da América. Esta lacuna se deve ao fato de que as faculdades, em grande parte, tratam o assunto como se este fosse uma curiosidade vinda d’além mar e não, propriamente, como uma especialidade das ciências jurídicas de capital importância para o deslinde das diversas nuances sob a qual se apresenta o fenômeno jurídico.
É mister salientar que a busca pelo conhecimento da essência teórica que perfaz o Direito Comparado já foi objeto de inúmeras controvérsias entre os juristas. Alguns acreditavam estar diante de um método específico de extrema utilidade para avaliar instituições jurídicas de diferentes lugares[3]. Outros, por sua vez, pensavam ser mais sensato considerar a matéria dentro de sua autonomia doutrinária específica, o que lhe conferiria um inequívoco ar de “ciência”.
Os europeus foram os pioneiros na produção de estudos sobre a matéria e na própria ministração da disciplina. Segundo as informações do Professor lusitano Carlos Ferreira de Almeida, o ensino do Direito Comparado iniciou-se em 1851 na Espanha, na Universidade de Madri. Depois, seguiram, nesta mesma ordem, a Universidade de Oxford (1869), Inglaterra e a Universidade de Paris, França (1890). Aliás, neste último país, grande impulso teve a disciplina em razão da fundação da “Société de Legislation Comparée”, em 1869, bem como da realização na capital francesa do “I Congresso Internacional de Direito Comparado”, no ano de 1900[4].
De qualquer maneira, sabe-se que o cabedal de informações inerentes à temática em questão concorre diretamente para o aprimoramento da cultura jurídica de qualquer interessado. Hodiernamente, a comparação dos sistemas legais em voga mundo afora se torna uma necessidade insurgente e, não mais, uma mera opção franqueada ao nosso operador do direito[5].

Quadro de Raga Kumbha
www.craftsinindia.com

1.2. OS CHAMADOS “GRANDES SISTEMAS DE DIREITO” E A ATUALIDADE DO ESTUDO DOS SISTEMAS DE DIREITO RELIGIOSOS – OS SISTEMAS DE DIREITO TALMÚDICO, ISLÂMICO E HINDU


Vale ressaltar que em muitos recantos da América do Sul imperou certa “prática” ou “tendência” em se resumir os tópicos do Direito Comparado a uma abordagem meramente informativa (e, portanto, simplista), das estruturas dos grandes edifícios jurídicos que perfazem os universos da Civil Law e do Common Law, como se estas famílias de direito[6], sem prejuízo a sua incontestável relevância, fossem as únicas a existirem no planeta. Ora, essa postura nos parece calcada de subjetividade, afinal, salvo melhor juízo, não se pode conceber, sob a ótica epistemológica, a idéia de que alguns sistemas legais[7] possam ser de fato “mais importantes” que outros. A diversidade reclama a insurgente produção de pesquisas das mais variadas espécies e o Direito Comparado traduz-se em ferramenta de imensurável valor prático e teórico. Basta lembrar que, no início deste novo milênio, em meio à evidente heterogeneidade proporcionada pela cultura humana, começa a despontar, no imaginário dos operadores do direito, a imperiosa necessidade de falar também na utilidade de estudos de sistemas legais religiosos, tais como o Direito Islâmico, o Direito Hindu e o Direito Talmúdico, campos do conhecimento jurídico a reclamar maior produção bibliográfica no Brasil. Oportunamente, bem declarou Mireille Delmas-Marty a esse respeito que a “análise comparada não se limitaria evidentemente apenas aos sistemas ocidentais; é indispensável trazer também aportes sobre famílias jurídicas mais distantes como o direito chinês ou os direitos em si mesmos muito diversificados dos países islâmicos”[8]. Vale dizer que os três supra mencionados tomaram corpo definitivo durante a Idade Média, os quais procuraremos em breves linhas avaliar.
Iniciemos a presente abordagem, portanto, pelo trato do “Direito Talmúdico”, matéria esta que, ao contrário do que ocorreria nos Estados Unidos da América, recebeu mui parcos comentários por aqui. Antes de qualquer coisa, cumpre logo esclarecer que no idioma hebraico existem duas palavras para nomear o fenômeno jurídico, quais sejam “Mischpat” (direito escrito) e “Halachá” (direito oral). Sabe-se, igualmente, que de modo paralelo ao desenvolvimento da Torah (Pentateuco) – consolidou-se também entre um povo judeu, uma profícua tradição oral, que se torna mais evidente após o fim do exílio babilônico (século VI a.C.) e alcança os quatro primeiros séculos da Era Comum. É conhecido o fato de que a destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C., acarretou a dispersão judaica pelos quatro cantos do mundo. O receio, pois, de perder a identidade cultural nos novos lugares de destino levou os líderes das comunidades israelitas a buscar novas alternativas de organização social, que fossem capazes de conservar vivas as tradições milenares dos antepassados. Os conflitos que naturalmente eclodiam em seu seio e as eventuais dúvidas sobre a correta maneira de se compreender a essência normativa da Torah, bem como de se vir a cumprir adequadamente as 613 leis lá dispostas, ensejaram o registro das mais variadas opiniões e análises rabínicas, cujo material foi cuidadosamente compilado na Escola de Judah Ha Nasi, no século II da Era Comum. Esta primeira fase se cumpriria com a produção da Mishná, um apanhado de costumes, decisões, filosofia judaica antiga e, principalmente, comentários às leis de Moisés. A esta etapa sucedeu-se que se instaurava novo ciclo de debates entre os eruditos sobre a Mishná, o que geraria a Gemará, ou seja, na prática, o “comentário dos comentários”. A consagração deste longo processo de hermenêutica se daria com a devida compilação dos dois Talmudes, o de Jerusalém e o da Babilônia, o que aconteceria já nos séculos IV e V d.C. Dentre os tais, prevaleceu em uso este último em meio à nação judaica. O Direito Talmúdico, portanto, como resultado deste processo histórico, é o conjunto de regras e preceitos filosóficos previstos no Talmude. Entre nós, brasileiros, vale notar, prevalece o legado cultural deixado pela exígua, porém, muito esclarecedora obra de um mestre da Universidade Hebraica de Jerusalém, que visitou o Brasil em maio de 1984 – o Prof. Ze’ev Falk[9]. Finalmente, é preciso que se diga que para o Estado de Israel, fundado em 1948, o Direito Talmúdico continua a ser de crucial importância, ainda que o país se declare oficialmente laico, afinal, as cortes rabínicas tratam de, praticamente, todas aquelas questões relativas ao direito de família. E, somente para confirmar a heterogeneidade e diversidade do mundo, basta lembrar que o Direito Israelense, na atualidade, além das leis talmúdicas, orienta-se segundo os pressupostos do Sistema Romano-Germânico de Direito.
O Direito Islâmico, também conhecido por “Sharia”, é um outro sistema religioso nascido na conturbada Idade Média. Como o Direito Hebraico, consiste também o Direito Islâmico ou Muçulmano num conjunto de leis religiosas, tidas por seus seguidores como “sagradas”, porquanto fruto de uma revelação. O fundador da terceira grande religião monoteísta – Maomé (570-632) - é considerado por seus seguidores o derradeiro e mais importante arauto da mensagem de Allah[10]. E foi justamente por intermédio deste líder religioso que os povos dos desertos da Arábia Saudita, sua terra natal, e também dos arredores abandonaram, progressivamente, o paganismo. A principal fonte da Sharia é justamente o Alcorão, o livro mais sagrado do Islã. Entretanto, existem outras mais a serem consideradas, tais como a segunda mais importante delas – a Sunna, - que retrata certas passagens da vida do Profeta e interpretações dadas a certas questões legais que acompanham esses mesmos relatos. Não se pode esquecer, todavia, que muitas pessoas, nos países islâmicos, vivem sob a égide do referido sistema, o que as obriga a perceber a realidade jurídica sob três ângulos distintos, onde se sobressai, simultaneamente, o direito de determinada ordem estatal, o direito islâmico (religioso) e um direito de origem consuetudinária, cuja presença marcante não pode ser negligenciada. É certo, pois, que o direito religioso nos países islâmicos se irradia como um sol sobre o direito estatal. Com órbitas tão íntimas a se entrecruzar precipuamente, por vezes, fica difícil descobrir no itinerário desta mescla de juridicidade, uma distinção prática na constituição e interpretação da tríplice conjugação legal em voga nestes Estados teocráticos.
O Direito Hindu é outro grande sistema legal a reger o universo de milhares de pessoas no mundo. Atualmente, sabe-se que o país, apesar de contar com uma destacada influência britânica latente na forma da organização do Estado, possui um sistema de direito misto, que conserva viva as tradições hinduístas milenares através dos moldes peculiares ao Common Law Anglo-Saxão, o que fatalmente confere-lhe um teor estrutural altamente original. Os outros dois sistemas citados no decorrer desta abordagem são bem mais acessíveis ao conhecimento e compreensão prévia do jurista ocidental, pois sua base religiosa é de caráter monoteísta. O Sistema Indiano de Direito, ao contrário, deve sua matriz aos pressupostos dogmáticos que conformam uma crença de cunho politeísta, com particularidades que se mostram, não raro, deveras complexas aos olhos de nossa civilização. Este é apenas mais um dos motivos a reclamar no Brasil maiores pesquisas sobre a matéria.

1.3. NECESSIDADE DO CONHECIMENTO DO SISTEMA CHINÊS DE DIREITO E DO SISTEMA LEGAL INDIANO


 RODE, Bernhard - he Empress of China Culling Mulberry Leavesc. 1773
Oil on canvas, 91 x 103 cm - Staatliche Museen, Berlin




            Tratemos agora de dois Sistemas de Direito de suma relevância na atualidade, afinal, não precisaríamos insistir no fato de que mais de um bilhão de pessoas, tão somente a título de justificativa, seguem preceitos jurídicos considerados sagrados e que os mesmos merecem a devida apreciação doutrinária. Nesse sentido, em países de base legal consuetudinária, como os Estados Unidos e a Inglaterra, observa-se uma disposição redobrada em conhecer e compreender outras concepções do fenômeno jurídico. Para isso, há indiscutível incentivo à pesquisa e o reconhecimento tácito da comunidade acadêmica acerca da validade de tais esforços. Todavia, muito mais do que isso, existe, alhures, o interesse e a determinação para levar a bom termo tão grandiosa tarefa. Assim, surgem no estrangeiro, quase que espontaneamente, especialistas em praticamente todas as áreas do conhecimento científico jurídico. As publicações de destaque, dentre as quais cuidamos de citar algumas no corpo deste artigo, dão conta de que não estamos adotando tom exagerado no discurso, mas, antes, enunciando uma realidade fática, originada de evidências cristalinas, de difícil contestação.
Igualmente, o jurista brasileiro não pode mais se dar ao luxo de se manter completamente alheio ao conhecimento dos sistemas legais de países orientais de filosofias milenares, cujas economias ascendem vertiginosamente, tais como a China e a Índia. De forma pertinente, Daniel C. K. Chow observa que a “China é agora um membro do regime jurídico comercial mais importante do mundo e terá a oportunidade de se tornar líder ao delinear o direito do comércio internacional no futuro”[11].
Já o “Direito Indiano pós-moderno” – dentro da complexidade de sua forma - foi definido por Menski como uma “intrincada combinação do novo e do velho, onde se questiona e abandona a crença cega em axiomas legais modernos e no progresso linear”[12].
Convém lembrar que as vantagens da dedicação a estudos dessa natureza já tinham sido notadas por Konrad Zweigert e Hein Kötz, que visualizaram, na eventual unificação do direito, a possibilidade de fomento, desenvolvimento e segurança aos negócios internacionais jurídicos[13].
Assim, se os empresários brasileiros pretendem celebrar acordos com empresas desses insurgentes lugares, mais em razão das infinitas possibilidades comerciais abertas cotidianamente ao nosso mercado, torna-se premente o gradual conhecimento das características básicas que perfazem distintos ordenamentos jurídicos. E este conhecimento só poderá seguir na trilha da pesquisa científica adequada às nossas necessidades bibliográficas e práticas.


1.4. O DIREITO COMPARADO E O APORTE INSTRUMENTAL PROPICIADO PELA RELAÇÃO COM OUTRAS DISCIPLINAS JURÍDICAS – UMA CONJUGAÇÃO INEVITÁVEL
                                  
O Direito Comparado mantém estreitas relações com inúmeras disciplinas das ciências jurídicas. Comecemos pela História do Direito, em que este laço se mostra deveras íntimo e irrestritamente profundo, afinal o elemento cronológico não é fator impeditivo para o estudo de sistemas jurídicos que já não mais existem. Ao contrário, necessita-se, com a devida urgência, de novas abordagens nesse sentido. Somente com o intuito de ratificar o que digo e, a título ilustrativo, em razão do imenso rol de possibilidades abertas ao pesquisador, indago, desde pronto, como se poderia conhecer a rica e diversificada simbiose propugnada pelo Civil Law sem considerar a contribuição germânica que delimitou os contornos de sua derradeira moldura? Assim, devem ser analisados à luz da ciência, não somente os aspectos culturais desta prodigiosa nação, que se espraiou por praticamente todos os recantos da Europa com o intuito de reocupar as antigas zonas de influência e domínio romano, mas também a riqueza e a diversidade proporcionada por um direito consuetudinário que assume a forma positivada já durante o decorrer de toda a Alta Idade Média.
Igualmente, assistiu-se a uma efetiva tendência unificadora do Direito Privado mundial que se instaurou ainda nos porões do século XIX, quando foram elaborados na Europa dois diplomas legais de proeminência histórica ímpar até então – o Código Napoleônico (1804) e o Código Civil Alemão (1900). Como já dissemos alhures, os estudos desta natureza são peculiares tanto à História do Direito, como também ao Direito Comparado. Aliás, eles são verdadeiramente cruciais à perfeita compreensão dos processos de evolução dos ordenamentos legais. Ademais, cremos ser oportuno e, de certa forma, absolutamente necessário nos reportarmos, ainda que de modo en passant, sobre questões relativas ao comparativismo legal sob a ótica privatista, uma vez que a própria disciplina e sua terminologia mais conhecida, qual seja, “Direito Comparado”, originaram-se das formulações propostas por Edouard Lambert, em 1903, através de uma obra ligada ao assunto em tela: “La Fonction du Droit Civil Comparé[14].   
Portanto, iniciemos falando sobre a França pós-revolução e do extenso lastro deixado pelo célebre imperador nascido na Córsega. Assim se pronunciou R.C. van Caenegem sobre o enorme impacto gerado pelo “Code Napoleón”, a mais laboriosa codificação civilista produzida até então (ao menos desde o Corpus Iuris Civilis de Justiniano, praticamente concluído entre os anos de 529 e 534 da Era Cristã):

…o Code civil de 1804 marcou uma ruptura decisiva na evolução gradual do direito. Substituiu a variedade do antigo direito por um código único e uniforme para toda a França; aboliu o direito que estava anteriormente em vigor, em particular o direito consuetudinário e romano (art. 7 da lei de 31 de março de 1804); incorporou várias medidas ideológicas inspiradas pela Revolução de 1789; e tentou tornar supérfluo o papel tradicional do direito erudito, ao proibir comentário doutrinário sobre os códigos, na crença de que a nova legislação era clara e auto-suficiente[15].


O Código Civil Alemão de 1900, o qual influenciou a composição de diversos códigos civis mundo afora, para muitos, é igualmente não menos importante, como bem asseverou Giordano Bruno Soares Roberto, na esteira do pensamento do jurista lusitano Antonio Menezes Cordeiro: “Os monumentos legislativos surgidos após o BGB são chamados de codificações tardias”[16].
A redescoberta do Direito Romano, como se sabe, seria o primeiro passo a ser dado nesta longa caminhada. As primeiras codificações no Brasil surgem, como é sabido, com a ausência de uma legislação civilista. Poucos anos após a Constituição Imperial de 1824 - outorgada por D. Pedro I – entram em vigor, quase que simultaneamente, o “Código Criminal do Império” (1830) e o de “Processo Criminal do Império” (1832). Apesar disso, sabe-se que nosso primeiro ordenamento jurídico como nação efetivamente livre e soberana não se cumpriria plenamente na ausência da produção de um código civil pátrio. Esta lacuna no âmbito do direito privado só não seria maior porque os brasileiros foram agraciados, no ano de 1850, com o “Código Comercial do Império” e o aceite do convite por parte de um gênio das letras jurídicas nacionais – o baiano Augusto Teixeira de Freitas – de vir a assumir a tão grandiosa tarefa de nos preparar um “Código Civil”. Mas a iniciativa não rendeu os frutos esperados em virtude dos inúmeros problemas de saúde e outras tantas circunstâncias de cunho político que impossibilitaram o notável intelectual de lograr o êxito esperado na empreitada assumida. Outrossim, como se sabe, nosso primeiro ordenamento jurídico civilista só viria à lume no longínquo ano de 1916, portanto tardiamente, já com a República instaurada, graças à dedicação de Clóvis Bevilácqua e, não obstante, à desproporcional e ferrenha oposição de Rui Barbosa. Estes fatores adversos que engessaram o Direito Brasileiro por décadas a fio não impediriam o reconhecimento internacional aos esforços propugnados por Teixeira de Freitas. O seu célebre “Esboço” se projetou largamente nos códigos civis da Argentina, do Uruguai e Paraguai, a ponto de o professor italiano Mario G. Losano considerar seu nome qualificado o suficiente para ser um dos três grandes juristas do “Direito da América do Sul”[17].


1.5. ALGUNS EXEMPLOS DE SISTEMAS DE DIREITO QUE DESAPARECERAM, COMENTÁRIO SOBRE O ANTIGO SISTEMA CONSUETUDINÁRIO JAPONÊS PRÉ-ERA MEIJI (1878-1912) E O BREHON LAW – O SISTEMA DE DIREITO CONSUETUDINÁRIO IRLANDÊS DO SÉCULO XVII

Vejamos, logo em seguida, mais alguns desses campos de investigação onde se conjugam irrestritamente as ferramentas próprias da História do Direito e do Direito Comparado. Ora, para tanto, escolhemos dois países que tiveram seus antigos sistemas de direito consuetudinários suplantados por outros: Japão e Irlanda. O Japão por motivações e conveniências de ordem política e a Irlanda, menos pela vontade de seu povo e mais pela imposição da força bruta do dominador vindo de Londres.
Destarte, não se pode olvidar que o direito não é, tão somente, um produto caracterizador da cultura humana, mas uma expressão factual desta. Quando o Sistema Romano-Germânico foi introduzido no Japão, em razão das profundas transformações político-administrativas que aconteciam na Era Meiji (1868-1912), o antigo direito ancestral nipônico foi, em apenas duas gerações, completamente suplantado por leis codificadas. A continuidade da influência estrangeira naquele país, durante as décadas seguintes, esmagou algumas instituições sociais de qual elemento jurídico, certamente, constituía-se num dos elos fundamentais. Desconectada de sua tradição milenar, a cultura japonesa, progressivamente, se rendeu às novas adaptações legislativas, a exemplo do que subseqüentemente ocorreria no Pós-Guerra, com a elaboração da Carta Magna de 1946, de nítida matriz norte-americana. Assim, se hoje o Direito Privado Japonês repousa suas raízes no Direito Civil Alemão, o Direito Público, por sua vez, foi ditado pelos juristas norte-americanos da Common Law. Esta rica e interessante simbiose somente despertou a curiosidade ocidental nos anos oitenta, principalmente, quando o Japão passou a ostentar diante do mundo uma assombrosa opulência econômica que caracterizou marcadamente um período.
Guardadas as devidas proporções, situação semelhante teve lugar na Irlanda, que possuía, até o século XVII, um sistema jurídico independente e original, fundado em antigos costumes celtas - a “Brehon Law[18]. Logo depois, a ilha sucumbiria fatalmente diante do domínio inglês e as antigas leis gaélicas seriam suplantadas por outras novas, ou seja, aquelas de novo determinadas pelo ímpeto da Metrópole. Enquanto isso, a Escócia, igualmente membro da Grã-Bretanha, conseguiu manter sua filiação ao modelo Romano-Germano em função de uma série de contingências que, por hora, não cabem aqui.
Assim sendo, de um contexto como este, pode-se extrair a exata noção da estreiteza dos laços que vinculam a Antropologia Jurídica e o Direito Comparado, enquanto ciências autônomas, porém, no que concerne aos seus conteúdos e significados, profundamente comunicantes entre si, principalmente, considerando o fato de que a primeira nasceu com o propósito de investigar o direito naquelas sociedades que não haviam desenvolvido qualquer forma de escrita. Segundo estes mesmos parâmetros, que associam disciplinas jurídicas afins, os antigos direitos germânico e celta, por exemplo, incluem-se igualmente nesta perspectiva, pois os mesmos foram desenvolvidos por duas nações cujo papel histórico à formação cultural do homem europeu não pode ser facilmente dimensionado. Nesse mesmo sentido, ratificando a necessidade da conexão a qual nos reportamos, transcorre a opinião de Rodolfo Sacco:


Não obstante a (aliás, por causa da) diversidade entre a realidade jurídica dos povos sem escrita e a realidade que encontramos nos países desenvolvidos, a experiência antropológica constitui para o comparatista uma prática sem igual, porque lhe ensina numerosas verdades de fundo, e, sobretudo, o resguarda de erros e preconceitos perigosos[19].

                                 
Se não bastasse a necessidade constante do aprimoramento do operador jurídico no âmbito do Direito Comparado, agora, com o despontar do fenômeno da globalização e a conseqüente formação dos chamados “blocos econômicos regionais”, apareceram, segundo as conveniências, novas ramificações das Ciências Jurídicas, dentre as quais o Direito Comunitário e/ou o Direito da Integração, que, na opinião de muitos, não passam de ramificações do Direito Internacional Público, são emblemáticos[20]. Mas seria a “unificação legal” o caminho mais viável ou a via de mão única para o acesso automático ao ‘direito no futuro’ ou ‘direito’ da chamada ‘pós-modernidade?’ Este é o grande ponto de discussão em voga na atualidade e também o eixo-motriz que redunda nas controvérsias estabelecidas entre os juristas dos mais diferentes sistemas legais. A problemática em questão já havia sido arvorada nos idos anos sessenta pelo famoso jus-sociólogo Lévy-Bruhl:


Já que o direito expressa a vontade do corpo social, não se pode unificá-lo senão na medida em que essa vontade é idêntica em toda parte. Ora, é bem evidente que semelhante conformidade entre todos os povos da Terra é inconcebível e até, talvez, indesejável. Deve-se concluir daí que qualquer unificação é impossível e, renunciando a qualquer esforço nesse sentido, manter, manter esse mosaico variegado e pitoresco de normas jurídicas mais ou menos contraditórias que hoje se observa na superfície do globo? Essa coexistência de normas díspares não teria grandes inconvenientes se os povos não pertencentes aos grandes agrupamentos ocidentais vivessem voltados para si mesmos e participassem apenas levemente na vida internacional? Hoje, porém, o que ocorre é algo bem diverso: as relações multiplicaram-se, e tudo leva a crer que se desenvolverão em ritmo acelerado. Segue-se que os contrastes quase sempre agudos entre diferentes sistemas jurídicos são suscetíveis de provocar graves conflitos, menos, talvez, no domínio do direito público que no dos direitos pessoais, familiais e patrimoniais. Daí o interesse humano em aproximar as concepções e instituições jurídicas[21].


Neste diapasão, seja qual for a tendência ou o rumo assumido pelo fenômeno jurídico nos dias vindouros, deve-se ter em mente que a homogeneização legislativa, opinião a que nos permitimos despretensiosamente, precisa estar profundamente comprometida com uma análise teórica de caráter propedêutico, que leve em conta as muitas possibilidades epistemológicas de leitura do direito, dos quais não se podem olvidar aquelas de caráter sociológico, histórico, filosófico e também antropológico. Mais do que isso, o direito, independentemente do teor do corpo de regras assumido por Estados Democráticos, deverá estar calcado nas necessidades sociais. Isto significa dizer que a mera reprodução normativa de um ordenamento legal, sem o estudo e a salutar discussão adequada, não nos parece recomendável.
De qualquer modo, observa-se que o Direito Internacional – outrora desprestigiado na academia e inserido nas grades curriculares apenas como uma disciplina optativa – torna-se, agora, matéria de relevância incontestável no universo globalizado, e, portanto, cátedra obrigatória neste novo cenário. Para se chegar a tal constatação, basta-se levantar a premissa de que o fenômeno da ‘mundialização’ – terminologia preferida dos franceses – acaba por promover o gradual e efetivo estreitamento de laços entre pessoas físicas e jurídicas, e esta realidade, por certo, se projeta inevitavelmente no orbe do direito.
Igualmente, o estudo do Direito Comparado poderá servir de importante instrumento a permitir o natural intercâmbio de idéias entre juristas ligados aos diferentes sistemas legais ou ‘famílias de direitos’, como bem alude René David[22] em seu clássico. A discussão e o debate acadêmico se fazem prementes à realidade que se interpõe diante dos operadores de direito brasileiros, e estes não podem mais se manter alheios às conjunturas sistêmicas previamente anunciadas pelos ventos da chamada “Pós-Modernidade”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Introdução ao Direito Comparado. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998.

ANCEL, Marc. Utilidade e Método do Direito Comparado. Trad. Sérgio José Porto. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1980.

CHOW, Daniel C. K. The Legal System of the People’s Republic of China. Saint Paul, MN: Nutshell, 2003.

DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. 3. ed. Trad. Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

DELMAS-MARTY, Mireille. Três Desafios para um Direito Mundial. Trad. Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003.

FALK, Ze’ev. O Direito Talmúdico: Uma Introdução. Trad. Neide Terezinha Morais Tomei e Esther Handler. São Paulo: Perspectiva, 1988. (Associação Universitária de Cultura Judaica).

GLENDON, Mary Ann; GORDON, Michael W. e CAROZZA, Paolo. Comparative Legal Traditions. Saint Paul: Minnesota, 1999.

LÉVY-BRUHL, Henry. Sociologia do Direito. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

LOSANO, Mario G. Os Grandes Sistemas Jurídicos. Trad. Marcela Varejão. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

MENSKI, Werner. The Legal Systems of Asia and Africa. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

PALMA, Rodrigo Freitas. A História do Direito. 2. ed. Brasília: Fortium, 2008.

______. Manual Elementar de Direito Hebraico. Curitiba: Juruá, 2008.

SACCO, Rodolfo. Introdução ao Direito Comparado. Trad. Véra Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2001.

ZWEIGERT, Konrad e KÖTZ, Hein. An Introduction to Comparative Law. 3. ed. Trad. Tony Weir. Oxford: Clarendon Press, 1998.



[1] Rodrigo Freitas Palma é Advogado, Especialista em Relações Internacionais e Mestre em Ciências da Religião. Na Faculdade PROCESSUS, é Professor de Sociologia Jurídica. No UNIEURO, é Professor de História do Direito, Antropologia e Direito Romano. Na FAPRO, leciona Direito Internacional, História do Direito e Antropologia Jurídica. É também autor das obras A História do Direito (Fortium), O Julgamento de Jesus Cristo: Aspectos Histórico-Jurídicos (Juruá), Manual Elementar de Direito Hebraico (Juruá) e de diversos outros artigos acadêmicos já publicados.
[2] Para o professor lusitano Carlos Ferreira de Almeida, Direito Comparado “é a disciplina jurídica que tem por objecto estabelecer sistematicamente semelhanças e diferenças em ordens jurídicas”. ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Introdução ao Direito Comparado, p. 9.
[3] “Para alguns juristas (geralmente para aqueles que não se dedicam à comparação jurídica, mas também para comparatistas como Gutteridge), o direito comparado é apenas um método, porque não tem objecto próprio definido”. ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Introdução ao Direito Comparado, p. 30.
[4] ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Introdução ao Direito Comparado, p. 12.
[5] Neste mesmo sentido assim destacou Marc Ancel: “Perguntar-se porque é oportuno praticar, agora especialmente, o direito comparado significa questionar em que este aspecto da ciência jurídica é atualmente necessário. Não se trata mais, então, do desenvolvimento habitual e corrente sobre o interesse e as vantagens do direito comparado em geral. Gostaríamos de evidenciar com clareza que aquilo que era considerado como um complemento útil ao direito nacional, como uma curiosidade, ou uma preocupação compreensível sobre as realidades externas, até mesmo às vezes como um divertimento de diletante, transformou-se, para o jurista contemporâneo, numa necessidade imprescindível”. ANCEL, Marc. Utilidade e Métodos do Direito Comparado, p. 127-8.
[6] A expressão “famílias de direito” é corrente na obra de DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, p. 16-24.
[7] Na oportuna lição de Carlos Ferreira de Almeida, “sistemas jurídicos (ou ordens jurídicas) são conjuntos coerentes de normas e de instituições jurídicas que vigoram em relação a um dado espaço e/ou a uma certa comunidade”.  ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Introdução ao Direito Comparado, p. 10.
[8] DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um Direito Mundial, p. 106.
[9] FALK, Ze’ev. O Direito Talmúdico, p. 17-23. Veja também PALMA, Rodrigo Freitas. Manual Elementar de Direito Hebraico, p. 27-30.
[10] “Deus”, em língua árabe.
[11] CHOW, Daniel C. K. The Legal System of the People’s Republic of China. Saint Paul, MN: Nutshell, 2003, p. 3. [Nossa tradução].
[12] MENSKI, Werner. The Legal Systems of Asia and Africa. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 273. [Nossa tradução].
[13] ZWEIGERT, Konrad e KÖTZ, Hein. An Introduction to Comparative Law. 3. ed. Trad. Tony Weir. Oxford: Clarendon Press, 1998, p. 25.
[14] Uma importante obra de Direito Comparado já traduzida para o vernáculo trata sobre as origens da disciplina. Veja a esse respeito ANCEL, Marc. Utilidade e Método do Direito Comparado, p. 29.
[15] CAENEGEM, R.C. van. Uma Introdução Histórica ao Direito Privado, p. 1-2.
[16] ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à História do Direito Privado e da Codificação: Uma Análise do Novo Código Civil, p.50. Vale ressaltar que a sigla “BGB”, utilizada pelo autor, refere-se ao modo como o dito Código é conhecido em idioma alemão: “Bürgerliches Gesetzbuch”.
[17] LOSANO, Mario G. Os Grandes Sistemas Jurídicos, p. 294-299. Os outros dois juristas mencionados foram Andrés Bello, do Chile e Dalmacio Vélez Sarsfield, da Argentina.
[18] PALMA, Rodrigo Freitas. A História do Direito. 2. ed. Brasília: Fortium, 2008, p.152-154.
[19] SACCO, Rodolfo. Introdução ao Direito Comparado. Trad. Véra Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 2001, p. 48.
[20] Alguns consideram a terminologia “Direito Comunitário” sinônima de “Direito da Integração”, mas existem outras tantas tais como “Direito Europeu”, “Direito das Comunidades Européias” e “Direito da Europa”. Veja a esse respeito BORGES, José Souto Maior. Curso de Direito Comunitário, p. 59. Mary Ann Glendon, Michael W. Gordon e Paolo G. Carozza, por sua vez, elegeram a Estrutura Supranacional de Direito na Europa, ladeado a Civil e a Common Law, um dos três sistemas de direito mais importantes da contemporaneidade.  GLENDON, Mary Ann, GORDON, Michael W. e CAROZZA, Paolo. Comparative Legal Traditions, p. 291-316.
[21] LÉVY-BRUHL, Henry. Sociologia do Direito, p. 127. Marc Ancel retoma essa mesma questão: “A unificação do direito é um dos problemas maiores do direito comparado. É bastante significativo, neste sentido, que Gutteridge, em seu livro que já foi citado várias vezes, embora adversário da unificação do direito, dedique a este assunto três capítulos consecutivos. Alguns comparativistas, ao menos durante certa época, propunham a unificação como objeto final da pesquisa normativa. Inobstante, como o próprio direito comparado, foi somente no século XX que esta preocupação se afirmou claramente, e que o movimento pela unificação do direito se desenvolveu com plenitude. Surgiram então o que se pode chamar de as primeiras formas da unificação. Logo após a Segunda Guerra Mundial, e depois da crise do comparativismo, sobre a qual já se falou inúmeras vezes, o movimento pela unificação assumiu novos rumos, que, de certa maneira, se opuseram às concepções da época precedente”. ANCEL, Marc. Utilidade e Métodos do Direito Comparado, p. 89.
[22] DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, p. 16-24.

domingo, 8 de abril de 2012

As Questões Legais Inerentes à Participação Brasileira nas Operações de Paz das Nações Unidas no Haiti - (MINUSTAH)


  Rodrigo Freitas Palma
(Trabalho apresentado em 2008 no âmbito do Curso de Pós-Graduação em Direito Militar do CESDIM e Revista Consilium, n.6, no prelo)



Palavras-chave: Forças Armadas Brasileiras, Operações de Paz, Missões de Paz, MINUSTAH, ONU, capacetes azuis, Conselho de Segurança.

RESUMO: O agravamento das crises mundiais a se intensificar desde o término da Segunda Grande Guerra, tem levado o Brasil, como um efetivo ator da sociedade internacional, a assumir, progressivamente, um papel de maior relevo no cenário global. Destarte, o escopo primeiro a nortear o presente trabalho resume-se ao trato das questões jurídicas inerentes à participação das Forças Armadas pátrias na MINUSTAH – a Operação de Paz das Nações Unidas no Haiti. Assim, procurar-se-á delimitar a competência, bem como, dimensionar as prerrogativas legais que são próprias ao Conselho de Segurança na condução do processo de consolidação da paz no mundo.

INTRODUÇÃO
                                   

Marco Dormino/Reuters (www.estadao.com.br) - 20/01/2010

                                  Prioritariamente, convém ressaltar que não traçaremos um esboço histórico acerca de todas as participações das Forças Armadas brasileiras nas operações de paz das ONU, cujo marco foi a crise no Canal de Suez em 1956, uma vez que tal estudo demandaria uma pesquisa bem mais detalhada, o que certamente fugiria dos propósitos de um artigo científico versado na questão legal da problemática levantada. Optamos, assim, por nos fixarmos unicamente na dimensão jurídica envolvendo o papel do Brasil junto a MINUSTAH – as tropas de paz das Nações Unidas no Haiti.
                                  Destarte, cremos ser útil explicitar o funcionamento e a estrutura orgânica que perfaz a referida entidade, direcionando o tema para a análise da situação no Haiti sob o aspecto formal, sem se olvidar, entrementes, de oferecer ao leitor a posição do assunto em tela, segundo as variáveis legais previstas no ordenamento jurídico pátrio. Para o logro da iniciativa, mister se fará tratar dos princípios constitucionais que regem o Brasil nas suas relações externas, bem como, a Lei Complementar n.97, de 9-6-1999, que delimita o emprego das forças armadas no contexto das missões de paz orquestradas no seio da ONU. A necessidade da dedicação a estudos desta natureza já é oportunamente apontada pelos professores Ângelo Bello Brutus e João Rodrigues Arruda, conforme nota-se a seguir:

“Apesar dessa trajetória incerta, as operações de paz têm proliferado no mundo. Diversos países, freqüente ou eventualmente, têm posto suas forças militares à disposição dos organismos internacionais para a condução desse tipo de operação. É, portanto, uma matéria atual, que merece ser estudada e acompanhada em suas evoluções”[1].

                                 Nesse mesmo sentido, na década de oitenta, cuidava de se pronunciar enfaticamente o embaixador José Carlos Brandi Aleixo:

 “Há numerosos capítulos de livros assim como artigos de periódicos sobre a política externa do Brasil com respeito à América Latina. Não me consta, porém, a existência de estudos sistemáticos e abrangentes especificamente sobre o Brasil e a América Central. O tema ainda não recebeu merecida atenção por parte de pesquisadores nacionais ou estrangeiros. O crescente desejo do Brasil e da América Central de diversificar e ampliar seus vínculos exteriores exige um maior conhecimento mútuo”[2].


                                  Por fim, no que concerne à necessária consulta aos textos de tratados internacionais, ressalto que utilizei o excelente compêndio intitulado “Direito Internacional: Estrutura Normativa Internacional”, que foi organizado por Francisco de A. Maciel Tavares e Alfredo de S. Coutinho Neto, o qual, em razão da praticidade peculiar ao volume, sempre indico para os meus alunos de Direito Internacional Público[3]. As Resoluções do Conselho de Segurança, a seu turno, poderão ser conferidas na versão em inglês do site oficial das Nações Unidas no Brasil ou, ainda, no de qualquer outro país vinculado à organização.

1.1.  A Participação Brasileira nas Operações de Paz da ONU: Consonância com
Princípios Constitucionais Respectivos ao Estado no Âmbito de suas Relações Internacionais

                                  A Carta Magna de 1988 não se refere, especificamente, ao emprego das Forças Armadas em missões de paz, entretanto, enuncia desde logo, alguns princípios régios no âmbito das relações externas do país que asseguram o compromisso oficial do Estado brasileiro em situações desta natureza[4]. Desde logo se torna possível perceber que a orientação apontada pelo legislador no art. 4º, em pelo menos três situações distintas, alcança a dimensão teórico-doutrinária por hora preconizada, especialmente, quando estabelece o interesse com relação à defesa da paz (art.4º, VI); à solução pacífica dos conflitos (art.4º, VII) e a cooperação dos povos para o progresso da humanidade (art.4º, IX).
                                  Ora, a defesa da paz não é somente o baluarte arvorado pelo Estado Democrático de Direito, mas um sonho acalentado pela raça humana desde tempos imemoriais que se projeta, de uma forma inequívoca, nos dogmas das três grandes religiões monoteístas da história do planeta[5] e serve de anteparo à construção da matriz de pensamento de filósofos da estirpe de Immanuel Kant[6].
                                  Sabe-se que os dois maiores conflitos do século XX praticamente obrigaram a humanidade a restabelecer novos parâmetros legais para definir os contornos de suas relações, tendo sempre como objetivo preponderante, a minimização da violência no mundo. Portanto, entendemos que o compromisso em prol da defesa da paz é uma obrigação institucionalizada pelo poder público e que esta, certamente, transcende as fronteiras internas, o que por si só justificaria a participação das forças armadas nacionais nas missões de paz das Nações Unidas.
                                  O chamado “princípio da solução pacífica de controvérsias” está profundamente atrelado à “defesa da paz”. Na lição de Bulos “busca-se com esse princípio estirpar medidas violentas ou coativas, a fim de garantir a prevalência dos direitos humanos”[7]. Considera-se, assim, que o país rechaça, pelo menos a priori, quaisquer formas de conflitos armados em detrimento do diálogo e das negociações diretas no campo da diplomacia. É notório que os Estados que recepcionam uma missão das Nações Unidas normalmente estão sofrendo violentas convulsões externas em que grupos armados disputam o poder. Os mais prejudicados neste tipo de situação são os grupos vulneráveis, ou seja, as mulheres, as crianças e os idosos. Os “capacetes azuis” – de quem falaremos mais adiante, buscam restaurar o respeito e à dignidade inerente ao gênero humano em qualquer situação, seja aqui, seja alhures.
                             A cooperação dos povos para o progresso da humanidade estabelece uma via de mão dupla, a qual, de certo modo, acaba por estabelecer uma diretriz de caráter obrigacional para os nacionais do Estado em relação às gentes de outros países. Outrossim, entende-se que a cessão de tropas especializadas para as operações das Nações Unidas estariam contribuindo proficuamente para a consecução destes ideais.  
                                  A Lei Complementar n.97, de 9-6-1999, responsável pela criação do Ministério da Defesa, bem como, o preparo e emprego das Forças Armadas, finalmente se remete de forma explícita à participação brasileira nas “missões de paz”, delimitando todos os contornos legais incidentes nestas situações. Vejamos, em dois momentos, a transcrição do texto in verbis naquilo que atine ao assunto:
Art. 11. Compete ao Estado-Maior de Defesa elaborar o planejamento do emprego combinado das Forças Armadas e assessorar o Ministro de Estado da Defesa na condução dos exercícios combinados e quanto à atuação de forças brasileiras em operações de paz, além de outras atribuições que lhe forem estabelecidas pelo Ministro de Estado da Defesa.
       Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de subordinação:
II - diretamente ao Ministro de Estado da Defesa, para fim de adestramento, em operações combinadas, ou quando da participação brasileira em operações de paz;

                                  Uma vez tratada da questão normativa no plano interno, far-se-á em seguida uma análise das competências organizacionais no plano do direito público externo, o que se traduz em essencial para a compreensão das diversas nuances político-jurídicas responsáveis pela instauração de uma missão de paz das Nações Unidas.

Fonte: João Fellet/BBC - (www.watadao.com.br) - 29/02/2012

1.2.  O Papel do Conselho de Segurança das Nações Unidas na Promoção da Paz e Segurança Internacionais e as Missões de Paz

                                  Herdeira dos propósitos norteadores da antiga Sociedade das Nações (SDN) nasce em 1945 - a ONU - uma instituição de caráter universalista calcada no ensejo maior de combater a beligerância e as misérias que assolam o planeta. Ora, é sabido que as duas grandes guerras haviam causado um impacto tão devastador entre as nações envolvidas nos conflitos, que se urgia a necessidade de se remodelar o cenário político internacional, principalmente, após a frustração com o fracasso dos intentos da Sociedade das Nações, que não conseguiu impedir a eclosão de uma nova guerra[8]. As grandes potências da época, apesar das evidentes divergências históricas fruto de disputas hegemônicas históricas, eram unânimes nas conferências realizadas, em primar por destacar a necessidade de uma organização supranacional que tivesse poder para agir em meio às crises mundiais. Assim, foram criadas as Nações Unidas naquele referido ano, por meio da célebre “Carta de São Francisco”[9]
                                  A estrutura orgânica da ONU é constituída pela existência de seis órgãos principais (art.7): a Assembléia Geral, o Conselho de Segurança, o Conselho Econômico e Social, o Secretariado, o Conselho de Tutela e, finalmente, a Corte Internacional de Justiça[10]. Os cinco primeiros encontram-se sediados na cidade de Nova York, enquanto que o único órgão judiciário das Nações Unidas localiza-se em Haia, na Holanda. Cada um desses órgãos tem sua composição própria estabelecida pela Carta.
                                  Em razão da temática a ser versada, adiantamos desde pronto que nos fixaremos na abordagem das atribuições do Conselho de Segurança, pois de acordo com o estabelecido na Carta de São Francisco, incumbe a este órgão tomar todas as medidas que se fizerem necessárias quando se tratar de ameaça à paz, ruptura da paz e atos de agressão (art.39). Destarte, cumpre observar que, ao menos no plano jurídico-formal, os Estados renunciam a iniciativa para instaurar qualquer forma de beligerância, o que não invalida a licitude da chamada “legitima defesa de Estado”, a que se reporta abertamente o art.51.
                                  O Conselho de Segurança das Nações Unidas é composto por quinze membros, sendo cinco deles, na atual fórmula, permanentes e com o poder de veto (Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, China e Rússia) e dez não-permanentes, ou seja, eleitos a cada dois anos. Esta configuração originou-se do contexto do pós-guerra. O quadro é, em linhas gerais, ilustrativo dos países que tiveram uma participação mais significativa na Segunda Grande Guerra mundial, o que gerou nas últimas décadas, diversas propostas de reformulação estrutural que ainda tramitam no seio da ONU.     
                                  Nas seis décadas que assinalam a trajetória das Nações Unidas, coube ora a Assembléia Geral, ora ao Conselho de Segurança, a tarefa de decidir favoravelmente pelo envio de tropas sob a bandeira azul da Organização. John Ruggie bem lembra que a preocupação em torno da criação de uma força militar internacional permeou os debates na Conferência de Dumbarton Oaks, em 1944[11], o que não foi suficiente para estabelecer algum consenso sobre os contornos jurídicos que definiriam essas missões. A primeira força tarefa para a manutenção de paz foi a UNEF, destacada para controlar a crise no Canal de Suez, em 1956. Depois vieram outras tantas, sendo algumas delas bem sucedidas e outras, nem tanto. O entendimento da sociedade internacional e da doutrina especializada sobre a participação da ONU nos conflitos que eclodem cotidianamente no mundo é que seu campo de atuação nesta matéria se dá, basicamente, em três dimensões distintas: a “manutenção da paz” (peace keeping), o “estabelecimento da paz” (peace keeping) e a “imposição da paz” (peace enforcement)[12].
                                  Assim sendo, os chamados “capacetes azuis” ou “boinas azuis” são todos aqueles militares das mais diversas nacionalidades que se encontram temporariamente à serviço de determinada missão oficial dirigida pelas Nações Unidas. As designativas acima listadas que os consagraram aludem à cor da bandeira da ONU. Conforme oportunamente preceitua o mestre Faibanks Mattos,

““...os capacetes azuis” continuam a fazer parte do Exército, da Armada ou da Aeronáutica de sua nacionalidade, conservam seu uniforme, submetem-se, porém, a um comando unificado, e este às diretrizes políticas, que lhe forem ditadas pelo Conselho de Segurança ou pela Assembléia Geral”[13].

                                  É mister que se diga que a ação da instituição nesses casos está condicionada a aceitação do Estado do auxílio internacional[14]. A iniciativa sempre irá ocorrer em função de uma necessidade incontestável, mormente de caráter humanitário ou, ainda, para promover a reestruturação de um país arrasado ou ameaçado por convulsões internas. O país, em tais situações, normalmente não possui mais mecanismos institucionais capazes de oferecer mais uma efetiva proteção aos seus civis. Por isso, não destituídos de senso estão Bohdan T. Halajczuk e Maria Teresa del R. Moya Dominguez, que consideram as operações para a manutenção da paz verdadeiras “forças policiais das Nações Unidas”[15].
                                  A participação da MINUSTAH[16] (United Nations Stabilization Mission in Haiti) foi regulamentada pelo Conselho de Segurança através de diversas resoluções específicas. A normatização da missão de paz da ONU no Haiti será objeto de nosso trato já no próximo tópico.
                                             
1.3.  A Base Legal para a Instituição da MINUSTAH (United Nations Stabilization Mission in Haiti)

                                  A profunda instabilidade interna vivenciada pelas instituições estatais do Haiti fez com que o Conselho de Segurança das Nações Unidas, no uso de suas atribuições primordiais, viesse a instituir, por meio da Resolução n.1529 (2004), a chamada MIF (Multinational Interin Force). Para tanto, considerou-se que contexto sócio-político e econômico do país representava verdadeiramente uma grave ameaça à paz e segurança internacionais, constituindo, pois, além disso, um perigo iminente ao equilíbrio regional do Caribe Central.
                                  A MIF, entretanto, então encabeçada pelos Estados Unidos, nasceu com data para acabar: a dita resolução previa para a mesma um mandato de apenas três meses, sendo esta logo substituída em 1° de junho de 2004 pela MINUSTAH (United Nations Stabilization Mission in Haiti). Logo em seguida, o Conselho de Segurança aprovaria uma nova diretiva objetivando tratar da questão sem o tom provisório inicial. Determinou-se, agora, um programa de ação mais elaborado segundo a conveniência requerida pela situação em tela, apesar de a Resolução 1542 (2004) estabelecer, a priori, seis meses para o logro das atividades.
                                  A MINUSTAH, inicialmente, foi composta não somente por militares (6.7000 homens), mas também, por um número indeterminado de civis, sendo estes, em grande parte, funcionários internacionais à serviço da ONU.
                                 Destarte, a referida entidade, por meio dos conhecidos “capacetes azuis”, deveria contribuir para o sucesso da transição política do governo central de Bonifácio Alexandre, que havia assumido a presidência no lugar de Jean-Bertrand Aristide, agora asilado na África do Sul. Havia a necessidade de se garantir a incolumidade do corpo diplomático da organização internacional, bem como, a segurança do povo haitiano, até então, refém de milícias ávidas pelo saque, rapina e devastação das cidades. Nesse sentido, sabe-se que os desafios seriam, sem dúvida, gigantescos: com as instituições falidas, o Estado Haitiano carecia de todo o apoio necessário à sua subsistência, pois o poder de polícia, a esta altura, era praticamente inexistente. Aos poucos, todavia, passa-se a se requerer formalmente o empenho do Governo de Transição na consecução de tais fins. É o que se delimita na Resolução n.1576 (2004) do Conselho de Segurança, onde se evoca, desde pronto, um apelo à “reconciliação política”, solicitando a este a pavimentação do caminho que levaria à esperada consolidação do processo eleitoral em 2005. O Governo de Transição, deste modo, deveria estar inteiramente comprometido com o combate à impunidade e a defesa dos direitos humanos, evitando-se, a todo custo, quaisquer violações à liberdade de pensamento[17]. Nesse sentido, o labor da ONU se torna mais aprimorado através da aprovação do documento em questão, agora com a previsão de uma participação ad hoc de um dos seis principais órgãos da instituição, o Conselho Econômico e Social (ECOSOC)[18]. Igualmente, renova-se o mandato da MINUSTAH até junho de 2005.
                                  Entre os dias 13 e 16 de abril de 2005 é enviada pelo Conselho de Segurança uma missão especial composta por diplomatas de oriundos de diversos países para avaliar a crise no país. O grupo, in casu, era liderado pelo Embaixador Ronaldo Mota Sardemberg. Da visitação foi elaborado um importante relatório sobre a real situação do povo haitiano.
                                  A Resolução n.1601 (2005), por sua vez, somente cuida de ampliar o mandato da MINUSTAH por mais 23 dias, ou seja, até 24 de junho de 2005.
                                  A Resolução n.1608 (2005), por sua vez, estende o mandato da MINUSTAH até 15 de fevereiro de 2006. Com a eleição realizada, a pretensão da Organização é agora com a continuidade das políticas de estabilização e fortalecimento das instituições do país. O contingente militar é ampliado para 7.500 homens e a polícia para 1897 civis. O Conselho de Segurança assevera a necessidade de se suscitar a conscientização da população sobre o papel da missão de paz da ONU naquele local. No campo da defesa dos direitos humanos ratifica-se a “tolerância zero” da instituição a qualquer forma de abuso sexual[19].
                                  Os esforços e a imprescindibilidade do trabalho da MINUSTAH são elogiados por diversas vezes na Resolução n.1702 (2006), que determina a presença da missão até, pelo menos, 15 de fevereiro de 2007. Novamente, o contingente é redimensionado: 7.200 militares e 1.951 membros da policia civil. A ONU, pela primeira vez, reconhece claros avanços no contexto político-social do Haiti, dos quais se torna emblemático sua readmissão no CARICOM (Comunidade do Caribe). Não obstante a isso, o documento reafirma que a situação é instável no país, o que a faz requerer junto aos militares da MINUSTAH, a contribuição de profissionais mais especializados no combate às gangues urbanas.       
                                  Na Resolução n.1743 (2007), a MINUSTAH é chamada a prosseguir na continuidade dos trabalhos desenvolvidos em estreita cooperação com a OEA e o CARICOM. O mandato desta é prorrogado para 15 de outubro de 2007. As Nações Unidas, a seu turno, expressam sua gratidão aos países que emprestaram tropas à missão e lamenta a perda de vidas daqueles que tombaram no campo de operações. Insiste em deixar claro que a efetiva responsabilidade pela manutenção da paz é do governo eleito, bem como, do próprio povo do Haiti, que deve convir favoravelmente pela concórdia e integração nacional.
                                  Vale ressaltar que em nenhum outro documento produzido pelo Conselho de Segurança até então, percebe-se de modo tão nítido, como o observado no conjunto da Resolução n.1780 (2007), os louros conquistados pela MINUSTAH. Pela primeira vez são reconhecidas no plano formal, vitórias reais no âmbito do processo de democratização do país, das quais a bem sucedida eleição municipal, que contou inclusive com a participação de mulheres e crianças, é ilustrativa. Foram notados progressos sensíveis no que concerne à segurança pública (apesar do reconhecimento da prevalência do tráfico de drogas e armas continuar existindo) e o respeito ao Estado de Direito. O mandato da MINUSTAH é ampliado até o dia 15 de outubro de 2008.
                 
CONCLUSÃO

                                  Apesar de autores como Ruggie[20] reconhecerem explicitamente em seus comentários o retumbante fracasso da atuação das missões de paz das Nações Unidas em países como a Somália e Bósnia, sabe-se que o papel desempenhado pela Organização em diversos outros recantos do mundo e, particularmente no Haiti, objeto deste trabalho, têm sido de crucial relevo. Nesse contexto insere-se o Brasil, com seu enorme potencial para contribuir com o elevado desiderato das Nações Unidas em prol da promoção da paz e segurança internacionais. As críticas que repousam sobre uma eventual ‘fragilidade’ do sistema da ONU podem ser sintetizadas nas palavras do Prof. Luis Ivani de Amorim Araújo que ressalta o fato de que “a ONU ainda não possui uma força armada própria e que esteja devidamente preparada para enfrentar qualquer Estado que ameace a paz mundial”[21].
                                  Sob o viés puramente jurídico, cremos que o comprometimento direto do país com a solução das crises mundiais, uma vez inserido no propósito maior das Missões de Paz orquestradas pela ONU, concorre fatalmente para dinamizar os intentos do legislador pátrio, fazendo valer no plano real os princípios que nos regem no âmbito das relações externas.
                                  Cumpre ressaltar que este engajamento vem de longa data. Já na primeira iniciativa adotada pela referida Organização, as nossas Forças Armadas legaram ano de 1956, valioso préstimo à solução da crise instaurada na região do Canal de Suez. A investida brasileira nesta área específica de atuação acabará por se projetar na doutrina nacional e, na maneira pela qual os juristas comumente se valem para fazer uma leitura não tão abrangente da missão das Forças Armadas. Na excelente lição de Ceneviva, confirma-se a tendência ainda simplificadora da abordagem do assunto entre os publicistas nacionais, o que justifica, certamente, a produção de novas pesquisas neste âmbito: “O papel das Forças Armadas é relacionado, na história, com a defesa externa, em caráter predominante e, suplementarmente, com a ordem interna”[22]. Não obstante a isso, muitas vezes, negligencia-se o seguinte fato muito bem lembrado pelo diplomata Antonio de Aguiar Patriota:

“O fato de o Brasil se haver situado em anos recentes entre os dez maiores contribuintes de tropas para as operações de paz e ser lembrado por observadores independentes como possível membro permanente em um Conselho de Segurança ampliado apenas reforçam um perfil de credibilidade na esfera de atuação do CSNU. O investimento de capital diplomático e – cada vez mais – de apoio militar na preservação e no fortalecimento do sistema multilateral de proteção da paz e segurança internacionais acaba por fazer com que sua vitalidade e legitimidade constituam, em suma, um objetivo de interesse nacional...”[23].

                                  Portanto, eis uma boa oportunidade para trazer o tema à baila, já que entre os próprios constitucionalistas brasileiros, como dissemos anteriormente, a questão ainda é debatida de forma extremamente exígua. Com a natural projeção do Brasil no cenário mundial e sua profícua contribuição à MINUSTAH, a questão, necessariamente, deverá perpassar também as discussões no orbe do direito.


BIBLIOGRAFIA

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2.      ALEIXO, José Carlos Brandi. O Brasil e a América Central. Brasília: Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados – Comissão de Relações Exteriores, 1984

3.      BELFORT DE MATTOS, José Dalmo Fairbanks. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: EDUC/Saraiva, 1979.

4.      BERTRAND, Maurice. A ONU. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

5.      BRUTUS, Ângelo Bello e ARRUDA, João Rodrigues. Direito Constitucional Militar e Direito Disciplinar Militar. Rio de Janeiro: Fundação Trompowsky/Universidade Castelo Branco/CESDIM, 2008.

6.      BULOS, Uadi Lâmmego. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

7.      CENEVIVA, Walter. Direito Constitucional Brasileiro. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

8.      HALAJCZUK, Bohdan T. e MOYA DOMINGUEZ, Maria Teresa del R. Derecho Internacional Público. 3 ed. Buenos Aires: Ediar Sociedade Anónima Editora, 1999.

9.      OLIVEIROS LITRENTO. A Ordem Internacional Contemporânea: Um Estudo da Soberania em Mudança. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.

10.  PATRIOTA, Antonio de Aguiar. O Conselho de Segurança após a Guerra do Golfo: A articulação de um novo paradigma de Segurança Coletiva. Brasília: Instituto Rio Branco, 1998.

11.  RUGGIE, John Gerard. Constructing the World Policy: Essays on International Institutionalization. London/New York: Routledge, 1998.

12.   TAVARES, Francisco de A. Maciel e COUTINHO NETO, Alfredo. Direito Internacional: Estrutura Normativa Internacional: Tratados e Convenções. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.



[1] BRUTUS, Ângelo Bello e ARRUDA, João Rodrigues. Direito Constitucional Militar e Direito Disciplinar Militar. Rio de Janeiro: Fundação Trompowsky/Universidade Castelo Branco/CESDIM, 2008, p.40.
[2] ALEIXO, José Carlos Brandi. O Brasil e a América Central. Brasília: Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados – Comissão de Relações Exteriores, 1984, p.9.
[3] TAVARES, Francisco de A. Maciel e COUTINHO NETO, Alfredo. Direito Internacional: Estrutura Normativa Internacional: Tratados e Convenções. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
[4] Consoante a redação do Art.142 “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
[5] As três grandes religiões monoteístas da história da humanidade são, segundo a ordem cronológica que estabeleceu seu surgimento, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.
[6] Refiro-me à monumental obra “A Paz Perpétua”.
[7]BULOS, Uadi Lâmmego. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.401.

[8] Nesse mesmo sentido, veja-se a abalizada opinião de Maurice Bertrand, ex-funcionário das Nações Unidas: “Como sabemos, essa magnífica estrutura ficou completamente em estilhaços. Após um período de ilusões que durou apenas uma dezena de anos, a Sociedade das Nações entrou na era dos fracassos. É fácil verificar que os sucessos são limitados a questões menores que dizem respeito a pequenos Estados e situam-se todos antes de 1935. A partir dos anos 30, o fracasso é permanente nas questões em que as grandes potências estão implicadas: em 1931, o Japão invade a Manchúria; em 1935 a Itália conquista a Etiópia; em 1938, a Alemanha avança na conquista dos países vizinhos – Áustria, Tchecoslováquia, Polônia – depois de ter anulado várias disposições do Tratado de Versalhes; e em abril de 1939, a Itália invade a Albânia. Paralelamente, os trabalhos sobre o desarmamento tinham fracassado. A Segunda Grande Guerra Mundial marcará sua falência definitiva. Portanto, estava sendo perfeitamente demonstrado que o entendimento entre os grandes não podia durar eternamente; que a segurança coletiva deixava de funcionar desde que se tratasse de desacordos entre eles; que o Tribunal de Justiça não tinha o direito de abordar desavenças políticas; e que a cooperação econômica e social, tal como era praticada, não era suficiente para criar um clima de paz. BERTRAND, Maurice. A ONU. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p.28. Oliveiros Litrento, por sua vez, salienta sem sua análise alguns pontos positivos na trajetória da extinta LDN: “Através da antiga Liga das Nações, que se propôs a fiscalizar e deter a política de força de certos Estados, que se excederam na concepção do Estado-nação, e passaram a imperialistas, julgando-se sem compromissos com a sociedade internacional, a segurança coletiva, associando Estados fiéis àqueles compromissos, impôs o princípio de que “a violação de um compromisso importa na obrigação de repará-lo”. Assim, é necessário, através da segurança coletiva, que a comunidade internacional organizada, por meio de órgãos adequados, aplique sanções ao Estado infrator ou delinqüente. E somente uma aliança de nações, reunindo Estados poderosos, pode impor sanções ao Estado infrator, geralmente também poderoso, sem nenhum respeito às regras internacionais comumente aceitas pelas nações civilizadas do mundo. Este era o objetivo principal da extinta Liga das Nações. Hoje, da Organização das Nações Unidas, ainda que parcialmente ineficaz em face da inoperosidade do Conselho de Segurança. OLIVEIROS LITRENTO. A Ordem Internacional Contemporânea: Um Estudo da Soberania em Mudança. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p.69-70.
[9] Os artigos mencionados no corpo deste tópico dizem respeito à Carta de São Francisco.
[10] No presente trabalho admoesta-se que nos resignaremos ao esboço de um quadro que represente, unicamente, as funções do Conselho de Segurança, órgão este mais diretamente vinculado ao assunto ao qual nos propusemos tratar no presente artigo.
[11] RUGGIE, John Gerard. Constructing the World Policy: Essays on International Institutionalization. London/New York: Routledge, 1998, p.241.
[12] A esse respeito veja os comentários de BERTRAND, Maurice. A ONU. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 63-6 e também os comentários de BRUTUS, Ângelo Bello e ARRUDA, João Rodrigues. Direito Constitucional Militar e Direito Disciplinar Militar. Rio de Janeiro: Fundação Trompowsky/Universidade Castelo Branco/CESDIM, 2008, p.47-9.
[13] BELFORT DE MATTOS, José Dalmo Fairbanks. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: EDUC/Saraiva, 1979, p.234.
[14] Como bem esclarece Fairbanks Mattos: “Tem-se entendido que a localização das tropas das Nações Unidas, em operações preventivas, em determinado território não priva o Estado respectivo de seus direitos soberanos sobre o solo. E que ele pode exigir, a qualquer tempo, a sua retirada, caso julgue inoportuna a presença de contingentes onuanos”. BELFORT DE MATTOS, José Dalmo Fairbanks. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: EDUC/Saraiva, 1979, p.235.
[15] HALAJCZUK, Bohdan T. e MOYA DOMINGUEZ, Maria Teresa del R. Derecho Internacional Público. 3 ed. Buenos Aires: Ediar Sociedade Anónima Editora, 1999, p.700.
[16] Eis a listagem dos países que contribuíram com seus contingentes militares para formação da MINUSTAH: Argentina, Benin, Brasil, Burkina Faso, Camarões, Canadá, República Centro-Africana, Tchad, Chile, China, Colômbia, Costa do Marfim, Croácia, Congo, Egito, El Salvador, França, Granada, Guiné, Itália, Jordânia, Madagascar, Mali, Nepal, Nigéria, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Romênia, Rússia, Ruanda, Senegal, Servia, Espanha, Sri Lanka, Turquia, Estados Unidos, Uruguai e Iêmen.
[17] A Resolução n.1576 (2004) do Conselho de Segurança demonstra uma clara preocupação com eventuais prisões políticas que estariam ocorrendo no país.
[18] As atribuições e a composição do Conselho Econômico e Social estão definidas entre os artigos 61 e 72 da Carta de São Francisco (1945).
[19] A Resolução n.1608 (2005) utiliza esta mesma expressão.
[20] RUGGIE, John Gerard. Constructing the World Policy: Essays on International Institutionalization. London/New York: Routledge, 1998, p.241.-255.
[21] ARAÚJO, Luis Ivani de. Das Organizações Internacionais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.51.
[22] CENEVIVA, Walter. Direito Constitucional Brasileiro. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.324.
[23] PATRIOTA, Antonio de Aguiar. O Conselho de Segurança após a Guerra do Golfo: A articulação de um novo paradigma de Segurança Coletiva. Brasília: Instituto Rio Branco, 1998, p.190.