Resumo: O objetivo central a nortear o presente artigo consiste em estabelecer a trajetória da aplicação da pena da crucificação no contexto da história das civilizações, visitando, para tanto, eras pré-romanas onde a dita condenação esteve em voga.
Palavras-chave: crucificação, pena de morte, Antiguidade, Roma, Jesus Cristo.
1.1. Pérsia: As Mais Remotas Origens da Crucificação
A crucificação é uma das mais tormentosas penas já registradas no decurso da história das civilizações. Difícil, na verdade, seria estabelecer quem foram seus verdadeiros artífices, mesmo porque, a condenação em tela assumiu diferentes formas e características ao longo dos tempos. Ademais, não se pode perder de vista que a hodierna noção acerca do castigo em questão é fruto da arte sacra medieval, mais preocupada em traduzir em imagens o martírio de Cristo na Judéia ocupada por Roma.
Guido da Siena . Flagellation, 1270 , Lindenaum Museum,
Altenburg
Entretanto, existem registros seguros que comprovam que esta execução capital já era aplicada na Pérsia Antiga (atual Irã), mais especificamente, entre os Medos[2] - um dos povos fundadores daquele portentoso império. Heródoto, a seu turno, fornece maiores pistas sobre o assunto. O historiador grego, a título ilustrativo, relatou o curiosíssimo caso de um certo “Sandoces, filho de Tamásios”, que havia sido sentenciado pelo rei Dario a morrer na cruz. Tendo-se já iniciado os procedimentos para levar à efeito a fatídica execução, percebe o monarca persa que, apesar das faltas cometidas, bem maiores eram os serviços prestados pelo réu ao seu cetro, ao que prontamente, determina sua imediata soltura. O jovem, por fim, é retirado a tempo do suplício que lhe havia sido imposto[3].
Os guerreiros assírios, por sua vez, não praticavam, propriamente, a “crucificação”, apesar de fazerem uso corrente da empalação, ocasião em que os vencidos em combate eram erguidos sobre estacas.
Os cartagineses, do mesmo modo que os assírios e persas, eram adeptos da adoção de penas mui cruéis. Entre tantas, como bem nota Jose María Blázquez[4], seguramente pode ser encontrada a crucificação.
Os cartagineses, do mesmo modo que os assírios e persas, eram adeptos da adoção de penas mui cruéis. Entre tantas, como bem nota Jose María Blázquez[4], seguramente pode ser encontrada a crucificação.
1.2. Crucificação: Uma Pena Conhecida pelos Povos da Hélade
Os povos de origem helênica, por sua vez, também conheceram algumas formas de morte na cruz. Eles chegaram a utilizar, inclusive, palavras específicas para se referir a este martírio, tais como “apothympanismos”. É o que informa Margaretha Debrunner Hall, notória especialista em “direito penal ateniense”, que cogita, ao menos circunstancialmente, o emprego desta severa pena capital entre os habitantes da mais importante cidade-estado do mundo helênico[5].
Igualmente, de acordo com o relato do historiador Quintus Curtius Rufus[6], o macedônio Alexandre Magno, homem de cultura grega, portanto, no decorrer do ano de 332 a.C., não hesitou em submeter cerca de dois mil moradores de Tiro à morte na cruz. Os soldados que capitularam em função do cerco à próspera e pujante cidade fenícia foram cruelmente executados nas praias do Líbano.
1.3. Os Romanos e a Crucificação
Contudo, como sabemos, a morte no madeiro tornou-se mundialmente conhecida por meio do mais notório julgamento da história da humanidade: o de Jesus Cristo. À época da implacável ocupação romana nas terras da Judéia, milhares de pessoas foram sucumbiram diante do terror deste suplício. A pena, prioritariamente, era destinada aos escravos e àqueles que se rebelavam contra a soberania imposta pelo império.
O perigo, pois, para todos aqueles que não se sujeitavam à ordem estabelecida pelo programa estatal da “Pax Romana” era iminente. Prova disso foram os incontáveis cadáveres que percorreram toda a extensão da Via Ápia no ano 71 a.C., ocasião da célebre revolta do escravo Spartacus. A insurreição foi finalmente contida pelas legiões comandadas por Crasso. A medida adotada tinha por finalidade servir de aterrador alerta aos descontentes e insubmissos.
Particularmente no caso de Jesus de Nazaré, a base legal para as condenações consistia numa violação à Lex Julia Majestatis, decreto este outorgado no ano 8 a.C., ainda que a pregação de Cristo fosse, do ponto de vista de qualquer especialista sobre o assunto, totalmente inofensiva à segurança do Império. Mas todos os que se negavam a pagar impostos ou incitavam o povo a fazê-lo poderiam ser tratados pelas autoridades como “rebeldes” e isto sugere que alguma fala de Jesus pode ter sido realmente deturpada (“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”), especialmente pelos seus opositores, os maiores interessados na proclamação da inclemente sentença. Sabe-se que a grande maioria dos casos, a incitação à violência e a promoção de atentados contra militares que se encontravam à serviço das legiões acarretava o dito castigo. Aqueles que martirizados agonizam publicamente eram, em sua grande maioria, nacionalistas que não aceitam a subjugação de sua pátria ao domínio estrangeiro e, por isso mesmo, orquestram árdua resistência contra o opressor vindo do Lácio.
Ora, justamente naquela semana, quando o Nazareno adentra triunfalmente pelos portões da Cidade Santa, os judeus celebravam o Pessach (Páscoa) que era, a bem da verdade, uma contundente exaltação à liberdade alcançada no Egito dos faraós, ou seja, a mais importante comemoração religiosa tradicional que rememorava a destruição dos inimigos da nação judaica. Deste modo, vale lembrar que nestas datas especificas Jerusalém não demorava a se encher de peregrinos vindos de todos os recantos do Mediterrâneo, o que explica a presença do Procurador Pôncio Pilatos no local, considerando-se sua incumbência maior de manter o controle político na região. Assim, opinamos no sentido de que Jesus foi condenado à morte na cruz em função de uma ordenança romana, não obstante as controvérsias ideológicas mantidas com os saduceus e fariseus da Escola de Shammai, as quais, naturalmente, renderam o interrogatório levado a cabo por alguns membros do Sanhedrin (Sinédrio).
Os condenados, por sua vez, carregavam o patibulum até o Gólgota, onde eram finalmente executados. Acima das cabeças dos condenados pairava a sentença e que na Judéia continha os dizeres em três idiomas distintos: hebraico, latim e grego. A escolha de um local público para o cumprimento do mando do Procurador Pôncio Pilatos não era acidental, mas antes, servia de advertência aos revoltosos.
De outro modo, fato é que a crucificação só foi abolida no Império em 337, por Constantino, quando Roma já estava prestes a se render à insurgente fé, curiosamente, fazendo daquele antigo martírio, o símbolo maior da crescente religião.
Ainda a esse respeito, vale dizer que uma interessante evidência arqueológica oriunda da Palestina do século I forneceu pistas importantes sobre as características da pena aplicada pelos romanos. O achado veio à lume tão somente em 1968, quando foi encontrado ao norte de Jerusalém, um ossuário contendo os restos mortais de um jovem que, segundo a inscrição, se chamava Yohannan Ben Ha Galgol. O rapaz teve seus pés perfurados por longos e espessos pregos, o que, especialmente sob este aspecto, convalida o tradicional relato dos Evangelhos.
1.4. A Crucificação no Japão do Século XVI
Quando os portugueses chegaram ao Japão, introduziram também o catolicismo no país. A crucificação foi aplicada na terra do Sol Nascente já a partir do século XVI[7]. A pena destinava-se, de modo jocoso, aos recém conversos. A aplicação de punições degradantes como esta somente começa a declinar no século seguinte, quando os nipônicos estavam sob a égide da dinastia Tokugawa. Entretanto, até esta época, continuam sendo praticadas outras infamantes formas de execução, dentre as quais se destacam a empalação (kushi sashi), o derramamento de água fervente sobre os condenados (nigoroshi, kamairi) e mutilações das mais diversas[8].
1.5. A Crucificação em Pleno Século XX
Seria razoável imaginar que a crucificação ainda pode estar sendo aplicada em algum recanto do mundo nos dias atuais? Sim, pelo menos no Sudão, esta é uma possibilidade nada remota. Antes de tudo, convêm assinalar que este país africano é regido por três sistemas legais distintos e, ao mesmo tempo, interdependentes entre si. Aquele de origem consuetudinária, não raro, se sobrepõe aos demais, mas a Sharia (Lei Islâmica) e o ordenamento jurídico estatal possuem jurisdições concorrentes[9].
Nas últimas décadas, esta nação vivenciou terríveis guerras fratricidas que acarretaram o caos social, sendo diversos os relatos de atrocidades oriundas de uma realidade comandada por conflitos civis de toda ordem. Um relatório da respeitadíssima Anistia Internacional revela que uma corte estabelecida na região norte de Darfur, entre outros veredictos, sentenciou ao enforcamento três homens acusados de terem cometido “assalto a mão-armada”. Após a execução, seus corpos seriam pendurados em cruzes. De acordo com Adeildo Nunes, magistrado pernambucano “a crucificação existe no Sudão, exclusivamente em relação ao crime de roubo e corrupção”[10].
Entretanto, não se pode esquecer que do rol das vítimas do morticínio não estão livres os cristãos, largamente oprimidos e perseguidos por membros de facções e lideranças ortodoxas islâmicas locais.
[1] Advogado. Especialista em Relações Internacionais. Especialista em Direito Militar. Mestre em Ciências da Religião. Docente em diversas instituições de ensino superior de Brasília-DF. Prof. de Sociologia Jurídica no PROCESSUS, onde atua como Coordenador de Políticas Editoriais do Curso de Direito. Prof. de História do Direito e Direito Romano no UNIEURO. Prof. de História e Introdução ao Estudo do Direito; bem como, de Direito Internacional na ANHANGUERA. Prof. de História do Direito e de Sociologia Geral e Jurídica no ICESP. Coordenador de Pesquisa Cientifica do CESDIM (Centro de Estudos de Direito Militar). Autor das obras “História do Direito”; “Direito Militar Romano”; “Manual Elementar de Direito Hebraico” e “O Julgamento de Jesus Cristo: Aspectos Histórico-Jurídicos”. Organizador e co-autor das obras “O Direito e os Desafios da Pós-Modernidade” e “Pensando o Direito: Uma Contribuição Propedêutica”.
[2] SLOYAN, Gerard Stephen. The Crucifixion of Jesus: history, myth, faith. Minneapolis, MN: Augsburg Fortress Publishers, p.14.
[3] HERODOTOS. História. 2 ed. Trad. Mario da Gama Kury. Brasília-DF: Editora da Universidade de Brasília, 1988, Livro VII, 194. Veja também Livro VI, 30; Livro III, 125; Livro III, 159.
[4] BLÁZQUEZ, Jose María. Fenicios, Griegos e Cartagineses en Occidente. Madrid: Cátedra, 1992, p.22.
[5] HALL, Margaretha Debrunner. Even Dogs Have Erin eyes: Sanctions in Athenian Practice and Thinking.. In: FOXHALL, L.; LEWIS, A.D. L. Greek Law in its Political Setting: Justification not Justice. Oxford: Clarendon Press, 1996, p.73-89.
[6] QUINTUS CURTIUS RUFUS. History of Alexander the Great of Macedonia. Trad. John Yardley. Book IV, 4. 10-21. London: Penguin Books, 2004.
[7] BOTSMAN, Daniel. Punishment and power in the making of modern Japan. New Jersey: Princeton University Press, 2005, p.81.
[8] BOTSMAN, Daniel. Punishment and power in the making of modern Japan. New Jersey: Princeton University Press, 2005, p.14.
[9] DENG, Francis M. Customary Law in the Modern World: The Crossfire of Sudan’s War of Identities. New York: Routledge, 2010, p.27-32.
[10] NUNES, Adeildo. A Realidade das Prisões Brasileiras. Recife: Nossa Livraria, 2005, p.136.
Publicado na Revista Virtú: Direito & Humanismo. Brasília: Unicesp, 2011.
Publicado na Revista Virtú: Direito & Humanismo. Brasília: Unicesp, 2011.
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