Girolamo da Treviso (O Jovem)
A Protestant Allegory, 1542-1543
The Stoning in Iran: Sakineh Ashtiani’s Case
By Rodrigo
Freitas Palma
O Irã é um dos redutos do
mundo onde ainda se encontra prevista a aplicação da lapidação, ou seja, o
apedrejamento até a morte. A fatídica punição destina-se à repressão daqueles
crimes considerados mais graves pelo universo religioso do Islã. O adultério,
como se sabe, aparece com muita evidência nesta lista. Curiosamente, no Alcorão,
a fonte por excelência da Sharia (Lei
Islâmica) não há, propriamente, qualquer referência ao castigo em questão.
Portanto, a existência da referida pena explica-se tão somente em função das
diferentes interpretações proclamadas pelas muitas escolas legais muçulmanas ao
estudarem as chamadas “hadith”,
conjunto de provérbios e feitos atribuídos pela tradição, à figura do próprio Profeta
Maomé. Não é preciso dizer que pairam diversas controvérsias sobre o assunto
até mesmo entre os “doutores do Islã” (ulemás).
Na terra de Ahmadinejad, a título ilustrativo, esta forma cruel e degradante de
condenação é parte de um roteiro dramático que continua a ceifar vidas.
Recentemente veio à baila, com muita
ênfase na mídia, o caso de Sakineh Mohammadi Ashtiani, uma senhora de 43 anos acusada
de ter cometido adultério, pasmem, após a morte do marido! Mas não é só isso. O
sistema jurídico iraniano permite outras esquisitices de mesmo gênero. Prova
maior disso é que há também entre os persas uma curiosíssima modalidade de
matrimônio em que o homem, sob o pretexto de se entregar de modo luxuriante a
novas aventuras sexuais, mediante o pagamento de determinada quantia
devidamente ajustada entre as partes envolvidas no “negócio”, digo “enlace
nupcial” e objetivando satisfazer seus desejos carnais, se mantém casado
unicamente por alguns dias ou, quiçá, segundo alvitre, até mesmo por algumas
horas. Como se vê, de maneira bastante cínica, trata-se de legalizar a
prostituição. Mas não se preocupe caro leitor: tudo ocorre dentro do mais
restrito império da legalidade. Ora, esta é apenas mais uma excentricidade do moderninho
“direito de família” iraniano.
Fato é que a condenação de
Sakineh gerou grande comoção no mundo todo e se traduziu na organização de diversas
manifestações, inclusive no Brasil, a favor da preservação de sua vida. E esta
realidade não poderia ser de todo modo diferente, afinal, o trágico
acontecimento em tela tornou-se um capítulo importante que, como uma lupa,
acaba por denunciar a longa história de luta das corajosas mulheres persas
contra todas as formas de opressão lamentavelmente reinantes em seu país.
A subjugação a qual nos reportamos
assumiu cores vivas em 1979, quando eclodiu no Irã a célebre Revolução Islâmica
de Khomeini. Os ortodoxos líderes xiitas que passariam a controlar um Estado
cada vez mais teocrático trataram, desde pronto, de estabelecer um longo rol de
leis severas restringindo a liberdade e os direitos históricos conquistados
pelas mulheres na época do Xá Reza Pahlevi. O objetivo dos aiatolás era o de se
posicionar radicalmente contra a influência do Ocidente, julgada pelo
destempero do radicalismo xiita, como “perniciosa aos bons costumes”. Às
mulheres, desde logo, foi imposto novamente o uso do hijab, uma espécie de lenço que lhes permitia apenas mostrar o
rosto. Igualmente, as mudanças que tiveram lugar a partir de 1967 no campo do
direito de família iraniano foram revistas por Khomeini, especialmente, aquelas
que reclamavam a necessidade de maior formalidade para a consumação do divórcio,
em detrimento do mero repúdio marital permitido pela Sharia. A guarda dos filhos, como era de se esperar de um universo
machista e preconceituoso, voltou a ser estipulada de modo a favorecer a condição
do homem nessas circunstâncias.
Todavia, vale aqui o registro de
que as mulheres persas jamais se intimidaram, nem mesmo quando se deparavam com
o espectro sombrio da face de Khomeini estampada nos cartazes e outdoors
espalhados pelas ruas da capital. Proibidas de usar maquiagem, certo dia, elas ousaram
fazê-lo para o horror dos carolas locais. Na atualidade, escritoras da estirpe
de Azar Nafisi, militante política e defensora dos Direitos Humanos, não se
cansam, oportunamente, de desnudar a hipocrisia de uma sociedade fundada no
medo. Para a chateação de Ahmadinejad, não preciso dizer que ela optou por
viver na América, não obstante o cultivo do amor à pátria um dia deixada para
trás. O título de seu bestseller - “Lendo
Lolita em Teerã” - já dá o tom do tamanho da encrenca que Nafisi
enfrentaria se permanecesse em solo persa. A destemida professora universitária
em meio ao caos instaurado pela revolução, promoveu entre suas compatriotas,
uma análise de clássicos da literatura proibidos pelas autoridades xiitas.
Recentemente, este símbolo da intelectualidade feminina que foi forjada em meio
ao “fogo persa” esteve no Brasil para divulgar seus escritos. Seja bem-vinda!
Por aqui, pelo menos durante o agora, a censura e o veto a uma imprensa livre
são apenas parte de um projeto. Esperamos que eles nunca logrem o êxito
esperado, do contrário, talvez sejamos colegas “in the Land of Freedom”, onde eu e outros tantos nos lembraremos, de
forma nostálgica e ufanista, daquela perdida “terra de palmeiras onde canta o
sabiá”.
Enquanto escrevo estas linhas
ganham força na internet campanhas de protesto que visam salvar a vida de
Sakineh. Convido todos a assinarem as listagens disponíveis no ambiente
virtual. As vozes de adesão partem de todos os confins da Terra. Porém, o grito
mais comovente é o das crianças que se obrigam a viver longe de sua amada mãe.
Elas imploram a manutenção das manifestações de repúdio à decisão da “Justiça”
Iraniana. Os interlocutores do governo de Ahmadinejad, que não entendem porque
as pessoas hostilizam tamanha insanidade, se esforçam para convencer os
habitantes deste belo planeta azul que o Irã é apenas uma vítima de complôs
gestados no Ocidente. Nisto, pelo menos, eles te razão, uma vez que uma
eventual oposição ideológica orquestrada no ambiente dos aiatolás certamente redundaria
em massacres.
Postado em 04 de Novembro de
2010.
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